Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP

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Joel Pinheiro da Fonseca
Descrição de chapéu STF

Bolsonaro sabia do golpe ou é tudo uma grande narrativa?

Nossa relação com o debate público polarizado, hoje, é similar a um tribunal

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Braga Netto, agora preso preventivamente, era o cabeça do plano golpista. Bolsonaro participou apenas da elaboração de um decreto de estado de sítio, dispositivo previsto na Constituição. Foi dissuadido pelo general Freire Gomes. Todas os elementos mais sórdidos do plano que hoje se descortina —com sequestro e assassinato— eram obra de Braga Netto e outros militares extremistas. O golpe seria dado, inclusive, no próprio Bolsonaro, posto que o comitê que assumiria o poder a partir do uso do artigo 142 não o incluiria.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, em Brasília - Adriano Machado - 25.nov.24/Reuters

Foi Braga Netto que, segundo Mauro Cid, arranjou o dinheiro que pagou os kids pretos. Era ele quem, por meio do general Mario Fernandes, mantinha contato com os acampamentos golpistas, dos quais saíram os atos violentos como a "noite do fogo" de 12 de dezembro e o atentado terrorista no aeroporto de Brasília.

A essa altura, você deve me considerar ou muito burro ou muito desonesto. É uma reação normal. Saiba, então, que não acredito na narrativa dos dois parágrafos acima. Estou apenas relatando a linha de defesa (ou ao menos uma delas) adotada pelo advogado de Bolsonaro em resposta ao inquérito que o indiciou.

Embora ela não convença, e até cause indignação, seus pontos centrais não são simples de se refutar, justamente porque exploram pontos fracos da acusação. De fato, ainda não há prova de que Bolsonaro soubesse dos planos de sequestro e assassinato, das operações dos kids pretos etc. É possível ligá-lo diretamente à minuta do decreto, para a qual ele inclusive sugeriu edições; mas tê-lo discutido —coisa que ele assumidamente fez— já configura crime? Isso não é claro.

É por esse caminho que a Justiça chega à verdade. Em vez de pedir a uma autoridade técnica perfeitamente imparcial para coletar provas e emitir uma conclusão, montam-se duas equipes antagonistas, assumidamente parciais, para que sustentem diferentes narrativas com base nos fatos conhecidos e busquem falhas na narrativa adversária. Podem inclusive negar fatos alegados pelo lado contrário.

O relatório final do inquérito da PF, com suas quase 900 páginas, também constrói uma narrativa. Os documentos puros —textos impressos, gravações telefônicas, prints de trocas de mensagens— são os elementos usados para tecer uma história que, ao contrário da narrativa da defesa, coloca Bolsonaro no centro da trama.

Chamar um conjunto de crenças de "narrativa" não é desmerecê-lo. Nosso conhecimento não é um mero empilhamento de fatos. Nós ligamos fatos pontuais em histórias maiores que dão sentido à realidade.

Nossa relação com o debate público polarizado, hoje, é similar a um tribunal: diferentes narrativas são construídas a partir dos fatos (ou supostos fatos) e se digladiam. Cada um de nós é um jurado no tribunal do debate público, chamados a dar vereditos diários para um lado ou outro. Podemos também nos fazer de advogados e promotores junto a nossos pares.

Nesse tribunal, de pouco vale nossa indignação com a posição de um adversário se não conseguimos mostrar seu ponto fraco. Em vez acusá-lo de burro ou desonesto, mais vale se interrogar: com base no quê posso afirmar que minha narrativa é verdadeira e a de meu interlocutor é falsa?

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Comentários

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Wil Prado

2.jan.2025 às 12h32

Os militares envolvidos no golpe não podem se queixar: sabiam com quem estavam lidando. Ele sempre agiu assim: quando flagrado, atribui aos asseclas. Claro, vai sempre dizer que militares e patriotários é que queriam o golpe. E ainda tem inocente que acredita!

Alexandre Marcos Pereira

18.dez.2024 às 12h28

Ney Fernando, grato pelo comentário. O que a importa no tribunal das redes sociais é a narrativa que cada um escolhe carregar como a bandeira de uma verdade própria. Há aqueles que defendem que o ex-presidente é um mestre estrategista, sabendo de tudo o tempo todo, mas tendo a esperteza do silêncio. Outros, o pintam como a vítima de um complô, um mártir perseguido por juízes togados e conspiradores internacionais. Nessa guerra de discursos, o golpe toma ares de fábula ou fato irrefutável.