Raízes da República: José Soriano de Souza e a Constituição de 1891
Os ideais e desafios do Brasil real na República em construção.
terça-feira, 27 de maio de 2025
Atualizado às 14:10
O advento da República no Brasil, em 1889, marcou um período de profunda transformação institucional e ideológica, culminando na promulgação da Constituição de 1891. Neste cenário de efervescência e construção de uma nova ordem, a figura de José Soriano de Souza emerge como um jurista e pensador fundamental, cujo legado é indissociável da análise crítica dos alicerces do constitucionalismo brasileiro. Sua principal obra, "Princípios Geraes de Direito Público e Constitucional", publicada em 1893, poucos anos após a instauração do regime republicano, oferece um panorama lúcido das tensões e desafios que marcaram a Primeira República, especialmente no que tange à difícil conciliação entre o ideal federativo e as persistentes práticas centralizadoras, além de uma reflexão sobre os limites do liberalismo adotado. Este exame da trajetória do autor, articulando sua biografia com sua produção intelectual, lança luz sobre os desafios fundacionais do constitucionalismo no país e o papel crucial dos juristas na moldagem de sua arquitetura política daquela época.
Nascido na Paraíba, José Soriano de Souza (1833-1895) trilhou um caminho intelectual diversificado antes de se consolidar como uma referência no Direito. Professor catedrático na prestigiada Faculdade de Direito do Recife, berço de importantes correntes do pensamento jurídico nacional, Soriano de Souza inicialmente graduou-se em medicina no Rio de Janeiro em 1860. Seu interesse, contudo, logo se inclinou para a filosofia, área na qual aprofundou seus estudos, chegando a traduzir um ensaio sobre o vitalismo de Ventura de Raulica e, posteriormente, a obter um doutorado em filosofia pela Universidade de Louvain, na Bélgica. Seu retorno ao Recife foi marcado pela vitória em um concurso para a disciplina de filosofia no ginásio de Pernambuco, superando o então jovem Tobias Barreto, que ficou em segundo lugar. Esta sólida formação filosófica e humanística impregnaria profundamente sua posterior análise jurídica.
A atuação de Soriano de Souza não se restringiu à academia. Ele se destacou na esfera pública, notadamente durante a "Questão Religiosa", um conflito entre a Igreja Católica e a Maçonaria que marcou o Segundo Reinado. Soriano defendeu fervorosamente Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, Bispo de Olinda, por meio de artigos publicados nos jornais que fundou, "A Esperança" e "A União", veículos de grande circulação e viés católico. Sua "estranha vocação de político católico, ou ultramontano"1, como observou Ubiratan de Macedo, foi respaldada por um "invejável esforço teórico", que o tornou uma voz singular na defesa dos princípios católicos no Brasil. Por essa atuação, foi condecorado pelo Papa Pio IX como Cavaleiro da Ordem de São Gregório Magno, uma das cinco ordens de cavalaria da Santa Sé, concedida pelo Papado em reconhecimento a serviços prestados à Igreja Católica.
A proclamação da República e a subsequente Constituição de 1891 encontraram em Soriano de Souza um analista arguto. O país vivia um momento de transição complexo, com o fim recente da escravidão, que desagradara grandes latifundiários, e a ascensão de uma nova classe com anseios de poder: os militares. A própria instauração da República foi, em grande medida, uma proposição das elites que desejavam ditar os rumos da nação2. Neste contexto, "Princípios Geraes de Direito Público e Constitucional" surge como uma obra crucial para compreender os caminhos adotados pelos republicanos e a interpretação do novo ordenamento jurídico. O livro foi elogiado por Rui Barbosa, especialmente pela análise positiva da separação entre Igreja e Estado, considerada por Soriano uma emancipação para os católicos.
A obra de Soriano de Souza propunha-se a desvendar as engrenagens por trás do palco da vida cotidiana e os pilares sob as quais aquelas formam o seu alicerce, utilizando as constituições como ferramentas de análise. Ele reconhecia que as constituições refletem as aspirações de uma sociedade em um tempo e espaço específicos, e a transição do Império para os "Estados Unidos do Brazil" demandava a criação de novos símbolos e elementos representativos do regime republicano federativo. Publicado no Recife, cuja Faculdade de Direito disputava com São Paulo a vanguarda do saber jurídico nacional, o livro de Soriano de Souza foi uma das primeiras e mais importantes doutrinas a se debruçar sobre a nova Carta Magna. Clóvis Beviláqua3 ressaltou a importância da obra para a interpretação da Constituição de 1891.
José Soriano de Souza foi um dos pioneiros em evidenciar as similaridades entre a constituição norte-americana de 1787 e a brasileira de 1891, uma influência hoje amplamente reconhecida. Ele apontou que muitas dessas inspirações iam além de princípios gerais, chegando a traduções literais de textos e formas de organização textual, incluindo o próprio nome oficial do país. Novamente, Rui Barbosa, constituinte de 1891, citou a perspectiva de Soriano de Souza em suas obras ao interpretar o novo texto constitucional. A relevância internacional de "Princípios Geraes de Direito Público e Constitucional" é atestada por sua presença em importantes bibliotecas ao redor do mundo, da Biblioteca do Congresso dos EUA à Biblioteca do Estado de Berlim.
Além de sua obra teórica, Soriano teve participação ativa na construção do novo ordenamento jurídico. Após a promulgação da Constituição de 1891, os Estados foram autorizados a elaborar suas próprias constituições. Soriano integrou a comissão encarregada de elaborar o "Projeto de Constituição para o Estado de Pernambuco" em 1890, tendo sido também senador e presidente do Senado estadual. Essa experiência prática certamente influenciou a profundidade de sua análise em "Princípios Geraes de Direito Público e Constitucional", publicado três anos depois. Na obra, Soriano de Souza adverte sobre a importância do conhecimento do organismo político do país, dos limites dos poderes públicos e dos direitos dos cidadãos para uma "mocidade esperançosa, inteligente e amante de uma pátria independente e livre"4. Ele se insurgia contra constituições abstratas, meros produtos do racionalismo liberal que negavam as tradições históricas e os costumes nacionais.
Para José Soriano de Souza, "o direito constitucional tem que consultar a experiência, as condições peculiares e as tradições do povo a que é aplicado, sem todavia idolatrar as velhas instituições, porque isso seria desconhecer as precisões do movimento e do progresso da sociedade"5. Sua análise evidenciava as complexas estratégias políticas e retóricas que prometiam progresso, identificando a necessidade de uma intervenção estatal para a formação de uma "consciência nacional"6.
A obra de Soriano de Souza rapidamente se disseminou pelas faculdades de Direito. Na Faculdade Livre de Direito da Bahia, fundada em 1891, a disciplina de "Direito Público e Constitucional", segundo Almachio Diniz, era lecionada com base no livro de José Soriano de Souza7. Diniz afirmava que esta foi, naqueles tempos, a disciplina mais estudada e que mais estudantes preparados formou na faculdade baiana. Para José Pedro Galvão de Sousa, a obra do jurista se impôs pela "limpeza e claridade com que escrevia", e mesmo vinte anos após sua publicação, era, no dizer de Barbosa Lima Sobrinho, "o livro mais didático para o estudo da matéria no País"8. Padre Leonel Franca elogiou suas obras filosóficas, como "Compendio de philosophia" e "Lições de philosophia elementar racional e moral", afirmando que Soriano de Souza exerceu "justa influência devida a seus elevados dotes intelectuais e morais".
A Constituição de 1891, ao ser promulgada, foi saudada por Prudente de Moraes como um marco para uma "Constituição livre e democrática, com um regime da mais larga Federação". No entanto, a transição não foi isenta de ceticismo, como demonstram as previsões de Eça de Queiroz sobre a possível fragmentação do Brasil em múltiplas repúblicas9. Gilberto Freyre, contudo, argumentou que tal profecia não se concretizou devido à forte unidade nacional já existente, baseada em crenças, costumes e sentimentos partilhados, de formação patriarcal, católica e ibérica, que não seria desfeita pela simples mudança de regime político10. A nova Constituição abandonou o parlamentarismo imperial, adotando o presidencialismo, promoveu a separação entre Igreja e Estado e instituiu a independência dos três poderes. O governo provisório, antes da Constituinte, já havia baixado decretos que formaram uma "Constituição de bolso, emergencial"11.
Soriano de Souza também destacou as influências de outras cartas magnas na Constituição brasileira de 1891, como a Suíça e a Argentina. Amaro Cavalcantti considerava a Constituição brasileira "o texto da Constituição norte-americana completado com algumas disposições das Constituições suíça e argentina"12. Por sua vez, a Constituição brasileira de 1891 influenciou a portuguesa de 191114. A Carta de 1891 vigorou até a Revolução de 1930, sofrendo apenas uma reforma em 1926.
José Soriano de Souza faleceu em 1895, pouco após se dedicar aos planos de ensino da Faculdade de Direito do Recife. Sua morte foi noticiada internacionalmente. Mesmo postumamente, sua doutrina constitucional continuou a ser invocada, como no Projeto de Resolução de 1979 que negou licença para o processamento criminal de um deputado, fundamentando-se em seus escritos, mais de 80 anos após seu falecimento e em pleno regime militar. Sua vasta produção inclui obras sobre medicina legal, filosofia, Direito, religião e política, como "Princípios Sociais e Políticos de Santo Agostinho" (1866), "Lições de philosophia elementar racional e moral" (1871), "Elementos de philosophia do direito" (1880), e o já citado "Projecto de Constituição para o Estado de Pernambuco" (1890), entre muitas outras.
Ao articular vida e obra, a trajetória de José Soriano de Souza revela-se crucial para a compreensão dos dilemas da fundação do constitucionalismo republicano brasileiro. Sua crítica à Constituição de 1891, baseada em uma leitura rigorosa do Direito Público e Constitucional, expôs as fragilidades do novo regime e os limites do liberalismo e federalismo adotados. Soriano destacou-se como uma voz lúcida, que via nos juristas uma responsabilidade ética na construção institucional da República. Seu legado, como ressaltado por Cynthia Pereira de Souza Vilhena ao analisar seu papel cultural15, convida à reflexão sobre o papel do pensamento jurídico na consolidação democrática e a necessidade de revisitar os fundamentos históricos do nosso constitucionalismo para enfrentar os desafios contemporâneos.
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1. MACEDO, Ubiratan de. Soriano de Souza, o primeiro pensador católico. O Estado de S. Paulo. Ano I, n 22, 13 mar. 1977. Suplemento Cultural, p. 8.
2. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: companhia das letras, v. 4, 1990, p. 10.
3. BEVILÁQUA, Clovis. História da Faculdade de Direito do Recife: edição comemorativa do sesquicentenário da instauração dos cursos jurídicos no Brasil, 1827-1977. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 336-580.
4. SORIANO DE SOUZA, José. Principios geraes de direito publico e constitucional. Recife: Casa editora Empreza d'a provincia, 1893, p.
5 .Ibid., p. 15.
6. SILVA, Rafael Trindade da; SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Nação e Liberalismo na Constituição Brasileira de 1891. Colóquio do Museu Pedagógico-ISSN 2175-5493, v. 12, n. 1, p. 1973-1978, 2017, p.3.
7. DINIZ, Almachio. O ensino do direito na Bahia. Rio de Janeiro: Alba, 1928, p. 25-26.
8. LIMA SOBRINHO, Alexandre José Barbosa. Introdução. In SOUZA, Braz Florentino Henriques de. Do Poder Moderador: ensaio de Direito Constitucional contendo a análise do título V, capítulo I, da Constituição Política do Brasil. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, Editora da Universidade de Brasília, 1978, p. 3.
9. FRANCA, Padre Leonel, SJ. Noções de História da Filosofia. 15ª edição revista. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1957, p. 272.
10. FREYRE, Gilberto, Ordem e Progresso. Editora Record, 2000, p. 180.
11. Ibid., p. 181.
12. ANDRADE, Paes de, BONAVIDES, Paulo. História constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Paz na Terra, 1991, p. 1-210.
13. MACIEL, Adhemar Ferreira. Nossa primeira constituição republicana à luz do direito comparado. In: Coletânea de Julgados e Momentos Jurídicos dos Magistrados do TRF e STJ. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, n. 29, p. 188-29, 2000.
14. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª Ed. Coimbra: Almedina, 1992, p. 320-974.
15. VILHENA, Cynthia Pereira de Souza. O papel cultural de José Soriano de Souza. 1980. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade de São Paulo. São Paulo, 1980.